A Pobreza em Portugal: Trajetos e Quotidianos
Sinopse sobre o grupo dos mais jovens no livro A Pobreza em Portugal: Trajetos e Quotidianos, original publicado em Abril de 2021 pela FFMS
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Este livro é uma síntese dos resultados obtidos no projeto «Trajetos e quotidianos de pobreza em Portugal». Foi desenvolvido por uma equipa multidisciplinar e multi‑institucional para a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Esta caracterização é feita, num primeiro momento, com base nos dados oficiais (do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento – ICOR) para, num segundo momento, se apresentarem resultados obtidos através dos microdados que nos foram fornecidos pelo INE ao abrigo de protocolo específico, referentes ao ICOR 2017 e centrados nos indivíduos com 18 e mais anos.
A análise da evolução global dos principais indicadores de pobreza não é só por si suficiente para uma verdadeira compreensão do fenómeno da pobreza e para a definição de políticas que possibilitem a sua redução de forma sustentada. Torna-se necessário identificar quais os setores da população mais vulneráveis à pobreza, isto é, identificar que setores da população se encontram em situação de maior vulnerabilidade social.
Considerando os três grupos etários representados, o dos 0‑17 anos apresenta os valores mais elevados para a pobreza monetária (20,7%), significando que mais de 350 mil crianças e jovens se encontravam em 2016 em situação de pobreza. Cerca de 20% da população pobre era constituída, nesse ano, por crianças e jovens.
Foi possível encontrar quatro perfis de pobreza em Portugal. O primeiro perfil é o dos Reformados, correspondendo a 27,5% do total da amostra. O segundo perfil, respeita a 26,6% da amostra, e foi designado como o dos Precários. O terceiro perfil respeita aos Desempregados, correspondendo a um total de 13,0% da amostra e constituindo o perfil menos numeroso. O último grupo é o dos Trabalhadores, corresponde a cerca de um terço do total, 32,9% e é o mais numeroso.
Perfil Precários
Em relação à condição perante o trabalho, a maioria não trabalha. São desempregados (33,2%) e estudantes (19,4%), sendo ainda de relevar o(a)s doméstico(a)s (10,4%) e os outros inativos (7,4%) e contrastam com a existência de poucos empregados (29,0%). De entre os que trabalham, a maioria fá‑lo em profissões enquadradas em duas categorias: trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segurança e vendedores (21,8%) e trabalhadores não qualificados (26,5%).
Neste perfil salienta-se, pois, a presença de bastantes jovens, uma escolaridade um pouco superior à dos restantes, um elevado grau de inatividade e alguma atipicidade na composição dos agregados familiares. A relação com o emprego é, como aliás no perfil seguinte, marcada por alguma distância. O que os individualiza é, sobretudo, o seu enquadramento em agregados familiares sem baixa intensidade de trabalho. Lendo conjugadamente este último dado com o seu afastamento do mundo do trabalho, a sua (relativa) juventude e os dados sobre a composição do agregado familiar, parece-nos que uma boa parte dos indivíduos incluídos neste perfil são filhos que habitam a casa dos pais.
A configuração deste perfil é definida, essencialmente, pela condição perante o trabalho: uns estão empregados e outros estão numa situação de dependência do seu agregado familiar pelo facto de serem estudantes, se encontrarem desempregados, exercerem trabalhos temporários, informais e sazonais, e trabalharem a tempo parcial de forma não voluntária.
O grupo apresenta uma ligeira sobrerrepresentação das mulheres e é o perfil que integra, em maior número, os entrevistados mais jovens e mais escolarizados. Mas também se evidencia a insegurança e instabilidade das inserções laborais de uma larga maioria destes entrevistados, independentemente das qualificações escolares que detêm, situação a que não é alheia a evolução da economia nas últimas décadas.
Na linha do que tem sido evidenciado pelas estatísticas disponíveis, também o perfil sociográfico dos entrevistados neste perfil demonstra que a população em situação de precariedade se tem renovado, na medida em que ao contingente tradicionalmente formado por trabalhadores desqualificados, oriundos de meios sociais desfavorecidos, desempregados e trabalhadores migrantes, juntam‑se agora os mais escolarizados – geralmente jovens – que deambulam entre empregos precários e mal remunerados, desemprego, inatividade, formação, como o percurso de alguns dos entrevistados neste perfil o denuncia.
Relação com o sistema educativo
A relativa desvalorização da escola e a existência de percursos escolares pouco consistentes constituem regularidades que aproximam este perfil dos Reformados, ainda que, em particular nos entrevistados mais jovens, as habilitações literárias sejam significativamente mais elevadas, sendo as mais elevadas dos quatro perfis, o que decorre também do progressivo alargamento da escolaridade obrigatória ao longo das últimas décadas.
Este perfil integra os únicos entrevistados que frequentaram ou completaram o Ensino Superior. Na generalidade, e apesar também de encontrarmos diferentes situações de abandono escolar, verificamos que, enquanto adultos, alguns regressam à escola.
Noutras narrativas, a escola associa‑se a um lugar de felicidade e segurança, um espaço marcado por boas recordações, sendo aqui exaltadas as redes de sociabilidade tecidas em torno do grupo de pares ou o suporte e apoio de alguns adultos no contexto escolar.
Transição para a vida adulta
Em Portugal, os estudos mais recentes demonstram que é nos agregados monoparentais que a pobreza mais cresce, comparativamente com os outros agregados e com os reformados, o que também denuncia a debilidade do Estado Social no apoio à infância e juventude, comparativamente com o facultado aos idosos. Ora, esta debilidade estrutural do modelo de providência português não consegue, nestes casos, ser compensada por uma solidariedade familiar que é bastante limitada pela situação de vulnerabilidade económica em que toda a estrutura familiar se encontra. Apesar disso, os entrevistados mais jovens assumem a importância do apoio prestado pela família nos seus processos de transição para a vida adulta, quer porque a família disponibiliza o alojamento para que os jovens possam enfrentar as dificuldades temporárias resultantes do desemprego, quer porque vai prestando um pequeno apoio quotidiano na disponibilização de bens alimentares e valores pecuniários, estratégias que não evitam a situação de pobreza em que se encontram.
Relação com o mundo do trabalho
Grande parte dos entrevistados estão numa situação de desemprego ou na zona intermédia entre emprego e desemprego, mas o trabalho não deixa de ser particularmente relevante na sua trajetória de vida. Estamos, pois, perante um segundo grande fator agregador deste perfil, no que à relação com o mundo do trabalho respeita. Em concreto, a maior parte dos entrevistados que não estava empregado, no momento da entrevista, exercia algum tipo de atividade laboral. Além disso, dos que trabalham de forma relativamente frequente apenas três apresentam algum tipo de estabilidade, mesmo que mínima. Quase todos os entrevistados, de uma forma ou de outra, exercem ou exerceram recentemente uma atividade laboral, em regra de forma precária ou muito precária.
Entre os fatores objetivos que caracterizam a relação com o mundo do trabalho, podemos encontrar, em primeiro lugar, as estratégias utilizadas para se procurar emprego. São estratégias constrangidas que limitam, no espaço e nas redes de sociabilidade, os recursos para se encontrar uma atividade laboral, com evidentes consequências na qualidade das atividades efetivamente conseguidas. Tudo isto se traduz na existência de uma trajetória de emprego em carrossel para a grande maioria dos entrevistados. Esta é marcada pela entrada e saída das mais variadas atividades, uma situação de precariedade que se estende no tempo, associada à informalidade e a períodos de desemprego.
Perspetivas face ao futuro
É possível distinguir um primeiro grupo, composto sobretudo pelos inquiridos da coorte mais velha, em que parece predominar a cristalização da privação enquanto modo de vida; e um grupo mais jovem e mais otimista, ou pelo menos mais magnânimo na forma como investe a sua imaginação na elaboração de planos no sentido da melhoria das condições de vida. Em qualquer dos casos, as necessidades básicas para garantir algum bem‑estar – como ter casa, trabalho ou saúde – são as preocupações mais comuns.
A segunda coorte geracional é composta por pessoas mais jovens, com idades entre os 18 e os 26 anos, a estudar ou em situação de desemprego e a viver em casa dos pais. Mais qualificadas, muitas delas têm empreendido e/ou pretendem empreender esforços no sentido de aumentar as suas qualificações, de forma a alargar as oportunidades de vida, com objetivos de aprendizagem ou de realização pessoal. A maioria destes jovens já trabalhou, uma ação que foi assumida como sendo instrumental para a aquisição de qualificações.
Apenas alguns conseguiram, de forma bem‑sucedida, dar continuidade aos estudos e pretendem concluir pelo menos o primeiro ciclo do Ensino Superior, mas a generalidade das narrativas parece ter subjacente um trade‑off entre a aposta nas qualificações e as possibilidades de saídas profissionais. E, se olharmos com atenção o caminho que está a ser trilhado na sua resolução, observamos que o ponto comum das respostas está no facto de refletirem um desejo de autonomia individual, mesmo quando cautelosas relativamente ao futuro, e de passarem pelo investimento em ações que visam procurar uma situação de menor vulnerabilidade a longo prazo.
Deve também sublinhar‑se que, embora a aposta em atividades de educação e formação seja central, esta não significa uma clara relação entre ambições educativas e ambições laborais ou, ainda, entre a dependência da família e a autonomia pessoal. Em primeiro lugar porque, como vimos anteriormente, o acesso ao mercado de trabalho constitui no imediato uma moratória nos projetos de vida ou é assumido como estratégia para reunir as condições necessárias ao prolongamento dos estudos. Em segundo lugar, porque as próprias decisões de natureza educativa são em muito condicionadas pelas expectativas de inserção laboral. Em terceiro lugar, porque na decisão sobre o rumo a tomar é também equacionada a rede de suporte familiar, incluindo nas dimensões mais subjetivas e relacionais. Por fim, é de destacar que a generalidade das respostas rejeita a perspetiva de vir a precisar de apoios sociais no futuro. A autonomia, não depender dos pais nem de apoios sociais, constitui um desejo expresso nestas entrevistas.
Redes de apoio não institucional e território
As narrativas são atravessadas pela privação, ainda que a forma como esta é percebida pelos sujeitos não seja exatamente coincidente. Com trajetos de vida já marcados pela precariedade laboral, apesar de alguns terem poucos anos de trabalho, os indivíduos entrevistados, em especial os mais jovens e escolarizados, têm uma sensível compreensão da situação social em que se encontram e do modo como a privação material condiciona as suas vidas quotidianas, tornando assim ainda mais relevante o papel das redes de apoio informal. As narrativas dos entrevistados mais novos revelam os efeitos das estruturas sociais nas desigualdades sociais.
Estas formas de «pequena miséria» são particularmente impactantes no grupo de indivíduos que constituem este perfil, incluindo aqueles que ainda estudam, nomeadamente no Ensino Superior. Trata‑se de estudantes universitários pobres, confrontados a todo o tempo com situações de privação, constrangidos a escolher permanentemente entre distintos bens e serviços que são fundamentais a uma existência confortável e até mesmo entre básicos, como a alimentação ou o transporte. Sendo, cada vez mais, o diploma universitário, em especial nas áreas das ciências sociais, escolha constrangida de parte significativa dos estudantes pobres, o debate em torno do salário estudantil, inseparável de um outro debate, o da desigualdade social, mais mediático hoje por força nomeadamente dos impactos da crise sanitária que vivemos, adquire uma renovada atualidade. Pode até ser entendido como surpreendente que as ajudas informais, ao mesmo tempo que colmatam necessidades fundamentais, como o vestuário, concorrem para produzir a diferença social que estigmatiza.
Conclusões do capítulo
A precariedade laboral é uma tónica comum às trajetórias profissionais retratadas, mesmo as que são construídas com base em percursos escolares mais prolongados. A situação aqui relatada pelos jovens mais qualificados contraria a retórica que associa, de forma linear, qualificações escolares e acesso a empregos mais qualificados, mais seguros e melhor remunerados. Independentemente das qualificações escolares, a reduzida oferta de empregos, os baixos salários praticados, o trabalho informal e mal remunerado e o baixo nível de rendimento disponível dos agregados familiares, constituem fatores que limitam as oportunidades e geram processos cumulativos de desvantagens sociais.
O Perfil dos Precários é o mais heterogéneo e menos coerente. A indefinição deste perfil está associada à posição que ocupa no mapa percetual da Análise de Correspondências Múltiplas, dado que apresenta um lugar intermédio entre os Perfis dos Desempregados e o dos Trabalhadores. Não obstante, é aqui que se concentram os mais novos e mais escolarizados. O que marca bastante este perfil é, por um lado, o facto de os agregados onde se inserem não terem baixa intensidade de trabalho e, por outro, ser o grupo onde a família‑providência é mais importante e onde os indivíduos (mais jovens) são mais otimistas em relação ao futuro. De facto, é possível perceber, sem que seja possível ter a certeza absoluta, que estamos aqui em presença, em boa parte, dos filhos adultos (e outros dependentes) dos indivíduos do Perfil dos Reformados. Dependendo, portanto, do trabalho que estes desenvolvem para a sua sobrevivência. Não obstante, há uma relação em nome próprio com o mundo do trabalho: quase todos, de uma forma ou de outra, exercem, ou exerceram recentemente, uma atividade laboral. A atividade em causa é exercida à margem das normas e regras que regulam a relação salarial, frequentemente em condições de grande penosidade, em precariedade, e com salários muito baixos, o que justifica a situação de pobreza em que se encontram e a sua dependência de outros.